Levantado do chão - José Saramago
Raramente um livro me conquista pela citação com a qual começa, mas Levantado do chão deixou-me claro com a de Almeida Garrett que nos íamos entender muito bem. Era uma citação sobre o número de pobres necessários para que o sistema produza um rico, e era surpreendentemente clara, quase impiedosa. E depois veio a prosa de Saramago.
A verdade é que não
posso dizer que me apaixonasse imediatamente com a escrita do autor:
achei confusa a sua forma de pontuar, especialmente a sua maneira de
inserir o diálogo diretamente nos blocos do narrador. Por vezes, não me
parecia claro se se tratava dum reflexo da voz do narrador ou da
enunciação duma personagem. No entanto, uma vez ultrapassado esse
obstáculo, descobri nas suas páginas muito mais do que esperava.
Levantado do chão
trata-se duma viagem deprimente através do século XX do campesinato
alentejano, através da fome, da miséria e do trabalho extenuante dos
campos; através dos abusos policiais e administrativos com a
cumplicidade da Igreja... As desgraças da família Mau-Tempo são sentidas
duma forma muito próxima; é difícil não ficar furioso com as constantes
injustiças às quais são sujeitos. Em todo o caso, no meio de tudo isto,
desfrutamos de raros mas necessários raios de esperança, muitas vezes
em forma de pequenos momentos de felicidade: a oferta dum cigarro, a
chegada dum amor ou o reencontro de certas personagens, por exemplo.
Saramago
joga maravilhosamente com todos os elementos da novela e constrói este
mundo do campesinato que, se não fosse pelas referências diretas a
Salazar ou à PIDE, ou às máquinas de guerra na parte final, poderia
situar-se no século XIX ou mesmo no século XVIII. O mundo camponês é tão
duro e pobre que é difícil combater a sensação de que o empobrecido
campesinato alentejano vive parado no tempo, que passou de servir um
senhor a servir outro, mas sem nunca avançar, sempre condenado à labuta
do amanhecer ao anoitecer, à pobreza e à fome. E ai deles se se
atreverem a fazer greve!
É um livro duro, mas é também um livro
formoso, uma estranha mistura de Memórias de um pequeno camponês e Os
miseráveis, em que podemos ler como a polícia de Salazar tortura os seus
prisioneiros, na novela simples grevistas, ou como surge o amor entre
jovens, por mais horrível que seja a situação geral.
Não sei
quantas vezes a época de Salazar é trazida para a arte. Piamos muitas
vezes, por exemplo, com o facto de o cinema espanhol voltar
repetidamente à guerra civil e ao franquismo, mas este é o meu primeiro
encontro com o salazarismo na arte. Para mim foi sempre, de certa forma,
aquilo que acabou com a Revolução de Abril, aquele pior tempo que
felizmente terminou. Suponho que houve pessoas que viveram bem com
Salazar, e suponho que, como sempre, foram as classes mais pobres que
passaram pior. No início, pensei que ia devorar o livro numa semana, mas
as dificuldades dos Mau-Tempo obrigaram-me a lê-lo em pequenas doses.
Por vezes, doía-me pensar em quantas pessoas tinham passado por
situações como as descritas pelo autor.
Acho que esta é uma obra
que toda a gente deveria ler, um daqueles textos capazes de ilustrar uma
época e, de alguma forma, contribuir para que não volte a acontecer.
Claro que não é um bom momento para otimismos, com a situação política
que vivemos neste momento.
Sinto que tenho dificuldade em
encontrar palavras que façam justiça a este livro. Gostaria de ser mais
claro e mais poético, como é a própria Levantado do chão, e talvez isso
seja a coisa mais verdadeira e mais bonita que posso dizer sobre a
novela, um texto em que cada palavra é a que deve ser.
Comentarios
Publicar un comentario